The Piper at the Gates of Dawn e a Aurora Consurgens, de São Tomás de Aquino
Aurora Consurgens, ou Aurora Nascente, é uma impressionante obra alquímica atribuída ao filósofo e frade São Tomás de Aquino, discípulo de Alberto Magno, que, por anos, permaneceu desconhecida do grande público até ser redescoberta por Jung, resultado de uma pesquisa apaixonada e pessoal, em busca da primeira parte dos manuscritos, excluída da edição original por ser considerada blasfema.
O termo “aurora”, que dá nome ao tratado, está relacionado ao latim aurum, ou ouro. Nesse sentido, o despertar da aurora equivale à obtenção do ouro, o mais nobre e precioso dos metais.
Aurora também designa a hora do ouro (hora áurea), indicando que momento propício para realizar a Obra e extrair o ouro é justamente o amanhecer. Por estar entre a noite e o dia, isto é, entre o preto (noite) e o branco (dia), a aurora é simbolizada pelas cores amarela e vermelha, seu rubor anuncia, portanto, que as trevas terminaram. A noite tornou-se clara como o dia. Por fim, o livro tem esse nome porque os doentes sentem o alívio das dores e o fim dos suores noturnos ao amanhecer, quando conseguem, então, descansar e repousar. A luz do sol surge como um remédio para o corpo enfermo (é o que diz esta passagem, inspirada nos Salmos: “o pranto permanece durante a noite, mas de dia, a alegria”).
O Aurora Consurgens, cujo texto consiste em um apanhado de ideias extraídas de outros autores, como Senior, e de excertos das Sagradas Escrituras, como Velho Testamento e Apocalipse, foi amplamente comentado e analisado por Marie-Louise Von Franz, em MysteriumConinctionis, vol. III (VON FRANZ. In JUNG, 2012c). Segundo a autora, o livro, um surpreendente mosaico de citações bíblicas e alquímicas, é um retrato de uma experiência religiosa do inconsciente, ricamente descrita pelo seu autor. Enquanto produto do inconsciente, a autora abordou-o como um sonho, com todos os seus enigmas e mistérios.
Nesse sentido, não se trata de uma mera invenção do intelecto, mas de um documento escrito por alguém dominado por forças desconhecidas, sob o impacto de uma forte emoção, típica das vivências numinosas. Ao abordá-lo, Von Franz, baseada em uma minuciosa pesquisa biográfica, apresenta a tese de que o livro foi escrito por São Tomás de Aquino num momento de surto psicótico e pouco antes de morrer. Em suas palavras, trata-se, literalmente, de um produto esquizofrênico. Os indícios de que algo assim estava a caminho de acontecer já eram notados em certos comportamentos estranhos que São Tomás vinha apresentando, como delírios místicos que o faziam entrar em êxtase enquanto celebrava missas.
São dessa época relatos de magníficas visões e testemunhos de quem o viu em estado de estupor, semelhante ao transe, levantando suspeitas de que pudesse estar enlouquecendo. Esses dados nos permitem traçar alguns paralelos entre o Aurora Consurgens e o The Piper at the Gates of Dawn, pois ambas as obras, embora separadas por séculos e com propósitos absolutamente distintos, têm em comum o fato de terem sido inspiradas pelo inconsciente, pois seus autores, São Tomás de Aquino e Syd Barrett, estavam vivendo nas raias da esquizofrenia quando tiveram a iluminação, o “surto criativo” que resultou nesses dois trabalhos fantásticos, cujos títulos exaltam a chegada do amanhecer.
Paráfrase do Cântico dos Cânticos, o Aurora Consurgens fala de uma figura feminina, a Sabedoria de Deus, ou Sofia, a Rainha do Sul, também chamada Aurora Nascente, que se manifestou para São Tomás de forma irresistível, como a noiva em busca do seu amor. No início, o simbolismo do livro gravita em torno do sofrimento e da morte, e, no final, de forma bela e poética, enfatiza o casamento sagrado ou a experiência mística do amor. The Piper atthe Gates of Dawn inicia com o tema da batalha e, no final, traz uma música com uma singela declaração de amor. Assim, ambas as obras, dentro de seu estilo e propósito e resguardada as devidas proporções, terminam com a ideia de coniunctio.
Essa conjunção, ou união, é com o próprio inconsciente, inesgotável manancial de forças psíquicas, que, no Aurora Consurgens, foi personificado como a Sabedoria de Deus. A referência ao nascer do sol reproduz o tema alquímico da aurora, num caso vindo do êxtase religioso de um moribundo, considerando-se que seu autor escreveu em estado de esgotamento físico e mental e, no outro, como resultado de um mergulho no inconsciente, característico dos estados alterados de consciência, comuns tanto nas inspirações visionárias quanto no uso de substâncias alucinógenas. E, assim, torna-se possível vislumbrar uma unidade subjacente a essas obras, uma união misteriosa entre ambas, o que lhes confere um caráter ainda mais insólito e surpreendente