Em 1908, o inglês Kenneth Grahame escreveu um livro para presentear seus filhos, uma obra despretensiosa que acabou se tornando um dos grandes clássicos da literatura infantil em todo o mundo. Esse livro é The Wind in the Willows (O Vento nos Salgueiros), do qual Syd Barrett tirou o título do disco de estreia do Pink Floyd, The Piper at the Gates of Dawn.
A história começa no início da primavera, quando o personagem Toupeira é tomado subitamente por um impulso, abandona sua casa e se dirige ao rio, levado por uma força maior. Lá conhece o Rato, formando com ele um forte laço de amizade, junto ao extravagante Sapo e o bondoso Texugo. Segue-se, então, alguns passeios e aventuras entre os amigos, que culminam na busca por uma criança perdida na floresta. Inicia-se assim a saga para encontrar o pequeno desaparecido, com o Rato e o Toupeira seguindo para o rio no meio da noite, iluminados pela tênue luz do luar. Isso acontece precisamente no capítulo VII, número de reconhecida implicação simbólica, por significar o caminho iniciático, relacionado à transformação.
A partir desse ponto, esses personagens se lançam em uma experiência totalmente fora do comum, à margem do que viveram até aquele momento. É como se a história atingisse um ponto de rotura, marcando a passagem do profano para o sagrado. À medida que se afastam, subindo pelo rio, ouvem uma distante melodia, um som cheio de doçura e saudade, semelhante ao sussurro dos juncos, que os deixam em silêncio, enfeitiçados pelo seu embriagante murmúrio. Com os sentidos possessos por essa coisa divina, nada lhes resta se não remar em sua direção, atendendo ao chamamento. Depois de atravessar a noite, com o som da flauta apoderando-se deles por completo, ambos desembarcam em uma pequena ilha, onde o vento sopra nos salgueiros. Esse é o lugar onde os escolhidos estão sendo aguardados.
Um sentimento inexplicável de reverência e medo toma conta dos dois, que se prostram diante de uma presença augusta, que se aproxima furtivamente, escondida entre as árvores. Foi quando, finalmente, surgiu por trás de um salgueiro a majestosa figura de Pã, o flautista da madrugada, com a criança que procuravam. Ao pegarem-na no colo, transbordando em alegria e contentamento, tudo em volta foi se esvanecendo, apagando-se de suas memórias, pois foram presenteados pelo deus com o dom do esquecimento. Confusos e sem entender o que aconteceu, sentiam-se como quem desperta de um sonho maravilhoso, conseguindo captar apenas um vago sentido de sua beleza.
No caminho de volta para casa, restou-lhes a sensação de terem vivido algo surpreendente, esplêndido e belo, e a lembrança fugidia de uma música distante, que a poucos eleitos é dado a dádiva de ouvi-la. Ao fim do capítulo, após devolver a criança aos pais, o Toupeira e o Rato caem em sono profundo. Embora a história não termine aqui, o importante é mostrar ao leitor o efeito provocado por Pã nos “escolhidos”.
O título The Piper at the Gates of Dawn não foi uma escolha arbitrária de Syd Barrett, seguramente ele conhecia o som dessa flauta e, assim como os personagens de Kenneth Grahame, foi conduzido para esse lugar idílico, onde estão os portões do amanhecer.
O encontro com Pã é uma experiência mística, mas também psicológica, com a consciência sendo transportada para outra realidade, a do inconsciente, conforme será mostrado ao longo do presente livro. Dessa experiência, o que fica é a sensação de algo único, indescritível, e um vago sentimento de estar acordando, despertado pelo eco flutuante das palavras “verdadeiras, inconfundíveis, simples… ardentes… perfeitas…”, sopradas pelo flautista, em forma de música, nos ouvidos de quem esteve com ele.
Como essas palavras caracterizam perfeitamente bem o disco, este será apresentado como fruto do encontro numinoso entre Syd Barrett e o Grande Pã, uma personificação das energias psíquicas, que, ao invadirem a consciência, em forma de experiência mística e visionária, arrastam os escolhidos para os lugares mais incríveis, cenário de sonho e mistério, como as músicas de The Piper at the Gates of Dawn.