O Tema da CriançaO tema da Criança está presente ao longo do disco em canções que abordam o universo mágico-infantil, assim como em The Wind in the Willows, especialmente no capítulo VII, a “viga central para as composições de Syd Barrett”, como destacou Barry Miles (2010). Não por acaso, nele ocorre a busca pelo pequeno desaparecido, ou seja, a criança perdida que há dentro de nós e que será encontrada com a ajuda de Pã, como uma “visão dourada de sonhos”.
Quanto a Syd Barrett, ficou para a última canção a retirada do véu e o momento de se revelar por inteiro, mostrando, com sua bicicleta, cuja cesta e campainha a ornamentam muito bem, a criança por trás das letras de The Piper at the Gates of Dawn. Isso já havia sido prenunciado em Bob Dylan Blues, composição escrita por ele em sua juventude e regravada em 1970: “Tenho uma alma e um bom coração de ouro”. A criança, a qual os alquimistas chamavam de Ouro dos seus sonhos, é o filius philosophorum, o filho dos filósofos, sinônimo da Pedra. Em O Livro Vermelho, ela também se fez presente, como mostra a passagem na qual Jung chamou sua alma de criança e Deus de criança em sua alma. Dele, são as seguintes palavras, cujo alcance nos faz pensar no poema Augúrios da Inocência,1 de William Blake, e no “menino” por trás de Bike. “Como soa estranho para mim chamar-te criança, tu que seguras em tua mão coisas infinitas” (JUNG, 2013, p. 120). Quanto à música, apontada pelo produtor Joe Boyd como uma das melhores faixas de todos os tempos, vemos por trás de cada linha, em cada melodia, e isso se estende a todo disco, o testemunho vivo de uma “criança” que desceu ao Reino das Mães, trazendo de lá uma profusão de imagens, cenas e temas que compõem o imaginário alquímico, pois derivam do inconsciente coletivo, o substrato mais profundo da psique, manancial de riquezas e tesouros acumulados ali em forma de experiências primordiais e significativas, como o ouro escondido no fundo da terra. O acesso a essas camadas, de onde emanam as experiências oníricas e religiosas, muitas vezes, em forma de conhecimento intuitivo e imaginativo, resultou nesse disco fantástico, uma verdadeira obra-prima, com músicas que primam não só pelo seu desregramento lisérgico, mas por tocar com encanto e fascinação o coração de todas as Crianças. Posto isso, nada mais resta senão regressar à infância e pedalar com Syd Barrett pelo seu universo mágico, um mundo de objetos e coisas, cheios de animação e vida, que ele quer compartilhar com sua garota, como as “coisas infinitas” que a criança segura com a palma das mãos. “Se você quiser coisas”. 1 Nesse poema, William Blake diz ser capaz de ver um Mundo em um Grão de Areia e o Universo em uma Flor Silvestre, assim como é possível o Infinito caber na palma da mão, e a Eternidade em uma hora. Essa forma de ver do autor, a quem Claudio Willer (2010) se referiu como “defensor do primado romântico da imaginação e da experiência visionária como fonte de conhecimento superior” (p. 206), tem relação com os objetos mencionados em Bike. Ainda segundo Willer, tais versos guardam alguma semelhança com a experiência dos beats, imortalizada na famosa epígrafe de Aldus Huxley, familiar a Syd Barrett e ao universo de coisas que preenchiam o seu mundo: “se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita”.
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"Sentado em um unicórnio, O Tema do UnicórnioO unicórnio, animal com forma de cavalo dotado de chifre, é um ser mitológico muito presente nos textos e tratados alquímicos, como mostra o Livro de Lambspring, no qual o unicórnio aparece acompanhado de um cervo, ambos considerados animais selvagens que precisam ser domados.
No contexto alquímico, é associado ao leão e ao dragão, animais de natureza selvagem e fugidia, difíceis de serem encontrados e capturados. Assim como essas feras indomáveis, que vivem escondidas em florestas e cavernas, o unicórnio, cujo chifre espiralado é sinal de poder, precisa ser apreendido de alguma forma. Por isso, ele está acompanhado de um “cervo fugitivo”, sendo ele próprio um “servo fugitivo”, pois, assim como Atalanta, não se deixa apanhar facilmente, estando em constante fuga (em referência ao mito de Atalanta, que inspirou Michael Maier em seu Atalanta Fugiens). Para os alquimistas, é também a personificação do espírito a ser encontrado e resgatado das florestas da noite, embora escape facilmente das mãos de quem tente agarrá-lo. A cor branca simboliza sua natureza espiritual, e a pureza característica daquilo que é submetido ao fogo purificador. Quanto ao seu poder, atribuído ao chifre localizado na parte frontal da cabeça, há um texto alquímico segundo o qual quem se servir desse ornamento para beber ficará imune a todas as doenças, adquirindo, além disso, a capacidade de caminhar sobre o fogo, sem sofrer qualquer dano (COSTA, 1999). Sua captura, e consequente domesticação, é geralmente feita por uma virgem, conforme mostram inúmeras representações medievais, onde uma jovem casta acaricia o unicórnio sentado em seu colo (esse também é um tema de ressonâncias religiosas, onde o unicórnio é o próprio Deus, assim como Jesus é filho do unicórnio. Nesse sentido, sua domesticação simboliza a transformação do Deus irascível no Deus do amor, por intermédio da Virgem). Em Flaming ele está domesticado, e por isso pode ser montado sem medo, ou seja, o espírito mercurial foi apreendido, ou fixado. Se antes era fugidio e selvagem, como uma matéria bruta não lapidada, depois de capturado e transformado, tornou-se manso e dócil. A respeito dessa transformação, sem a qual não seria possível montá-lo, os alquimistas diziam que antes de ser amansado, o unicórnio assustava-se consigo mesmo, temendo o reflexo da própria imagem. Algo assim aconteceu com o unicórnio citado neste verso, pois sua presença em uma música, cujo título faz uma clara referência ao fogo, mostra que as chamas flamejantes o purgaram de seus aspectos sombrios e ameaçadores, tornando possível esse enlace amistoso em Flaming. A sequência da música, que diz, “você não pode me ouvir, mas eu posso ouvir você”, reafirma, por fim, o aspecto furtivo do unicórnio, e consequentemente da Pedra, ambos, expressão do Mercúrio Filosofal. Assim como o fogo abundante está em todo lugar, ele está mais perto do que podemos imaginar. Falta-nos tão somente a simplicidade das crianças para vê-lo, senti-lo ou ouvi-lo, onde quer que esteja. Por fim, quem consegue encontrá-lo e domá-lo, antes de devolvê-lo à floresta, é chamado “mestre’, como diz o Livro de Lambspring, o que nos faz pensar em Syd Barrett, pois ele montou o unicórnio, sem medo, e com toda maestria, convidou-nos a fazer o mesmo. “Os cabiras trazemos |
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